INTRODUÇÃO
A doença de Fahr é uma entidade rara e neurodegenerativa, caracterizada pela calcificação bilateral e simétrica dos núcleos da base de associação familiar e idiopática. Quando relacionada a outras doenças, não de origem familiar, é descrita como Síndrome de Fahr. A deposição de cálcio pode ocorrer em outras regiões, como núcleo denteado, córtex cerebral e cerebelar, o que determina diferentes apresentações clínicas. Descrevemos um caso de síndrome de Fahr secundária ao hipoparatireodismo em uma mulher idosa com quadro de sonolência, dispneia e tiques.
RELATO DO CASO
Paciente T.F.O., 78 anos, sexo feminino, natural e procedente de Salvador, aposentada, com diagnóstico prévio de hipotireoidismo e depressão, foi admitida na emergência do Hospital Santa Izabel, com quadro de sonolência há 3 dias. Refere que o quadro teve início súbito e associado à dispneia em repouso, sem tosse, sem piora ao esforço ou edema de membros inferiores. Apresentou também febre não mensurada, picos isolados, sem calafrios. Não há relato de quadros prévios. Negou dor precordial, lipotímia, náuseas e vômitos. Na história pregressa, refere episódios de crises convulsivas, que recorreram por duas vezes, com necessidade de internação para tratamento. Relata também tiques nos quatro membros, há cerca de 2 anos, com piora progressiva. Referiu uso regular de Desvenlafaxina 100 mg/dia, Puran T4 mcg/dia, Rivotril 2 mg/dia e reposição oral de cálcio. Ao exame físico, apresentava-se sonolenta, contactante aos chamados, lúcida, orientada, porém febril (T: 38.1ºC), taquicárdica (FC:133bpm) e com crépitos no hemitórax direito, à ausculta respiratória. Demais sistemas sem alterações. Apresentava tiques (abalos simétricos e involuntários de grupos musculares) nos quatro membros, com predomínio em membros inferiores e sinais de Chevostek e Trousseau positivos. Exames complementares revelaram a presença de hipocalcemia severa (Cálcio sérico: 4.6 mg/dl (VR: 8-10); Cálcio iônico: 0,64 mmol/L (VR: 1.16-1.32) e PTH: 8 pg/ ml (VR: 4-68), Vitamina D: 19,7 ng/ml (VR< 20); Magnésio: 1.4 mg/dl (VR: 1,7-2,5), compatíveis com o diagnóstico de hipoparatireoidismo primário). A tomografia de crânio revelou calcificações dos núcleos da base (Figura 1). Com o início da reposição de cálcio e vitamina D para o tratamento da hipocalcemia, a paciente evoluiu com remissão completa do quadro de tiques e desaparecimento dos sinais de Chvostek e Trousseau após 5 dias. Recebeu antibioticoterapia para infecção do trato respiratório com melhora total dos sintomas. A paciente recebeu alta com prescrição de reposição de cálcio e calcitriol e foi encaminhada para acompanhamento com endocrinologista e com diagnóstico confirmado de hipoparatireoidismo primário associado à Síndrome de Fahr. DISCUSSÃO
Por volta de 1930, na Germânia, o neurologista Karl Theodor Fahr descreveu o primeiro caso de Síndrome de Fahr, após autópsia de um paciente de 81 anos, que apresentava crises epilépticas1 .O achado de depósito de cálcio nos gânglios da base e nos vasos cerebrais explicou a presença de algumas disfunções neurológicas e psiquiátricas1,2. A síndrome de Fahr caracteriza-se pelo depósito de cálcio nas regiões perivasculares, na camada íntima e membrana basal dos vasos, seguidos de degeneração neuronal e gliose dos astrócitos com hipertrofia, hiperplasia e, finalmente, necrose3,4. Os locais mais comuns de depósito são o globo pálido, tálamo, núcleo denteado, córtex cerebral e cerebelo subcortical. E são associados a mecanismos distintos de sua formação, que resultam em manifestações clínicas diferenciadas5,6. A doença acomete mais pacientes na terceira e quarta décadas de vida, sem predileção por sexo2,7. Jaworski e seus colaboradores (2017) descreveram 3tipos de apresentação clínica da Síndrome de Fahr: início na infância (inibição do desenvolvimento mental e mortalidade precoce), início precoce, por volta dos 30 anos (sintomas predominantemente psiquiátricos), início tardio, por volta dos 50 anos (demência progressiva e desordens do movimento)3 . A etiologia pode ser de origem primária genética, quando envolve pessoas de uma mesma linhagem familiar e a mutação no locus 14q48, ou secundária, conhecida como Síndrome de Fahr8 . Diversas outras patologias estão associadas (Figura 2), como as desordens endocrinológicas: pseudo-hipoparatiroidismo, hipoparatireodismo secun-dário ou primário, sendo que este último é uma das principais causas de hipocalcemia crônica e calcificação cerebral9 . No caso relatado, demonstra-se um quadro de hipoparatiroidismo primário com manifestação clínica de hipocalcemia crônica e Síndrome de Fahr.
O hipoparatireoidismo resulta em hipocalcemia e hiperfosfatemia, cujo quadro clínico manifesta-se com tetania, insuficiência cardíaca congestiva refratária, distúrbios psiquiátricos e do estado mental10. A intensidade e o tempo de redução das concentrações dos níveis de cálcio determinam a severidade e tipo de apresentação clínica. Complicações crônicas incluem catarata precoce, pseudotumor cerebral ou calcificações dos gânglios da base, que, quando bilateral e simétrica, caracteriza a Síndrome de Fahr3,10. A depender do local do depósito de cálcio, a Síndrome de Fahr apresenta uma variedade de sintomas neurológicos, com a demência, epilepsia, espasticidade, tetania e até coma10. Alterações do movimento encontradas são coreia, parkinsonismo e tremores. E as alterações psiquiátricas compreendem depressão, esquizofrenia e psicose. Distúrbios da atenção e da cognição também estão associados9 .
Os sinais de Chevostek e Trousseau, que indicam irritabilidade do sistema excito condutor e muscular, geralmente estão presentes ao exame físico. O diagnóstico de Síndrome de Fahr é definido pelo achado de calcificação dos núcleos da base (ou outras regiões cerebrais ou cerebelares) por exame de imagem . A tomografia de crânio (TC) é o método de escolha devido à maior sensibilidade do que a ressonância magnética (RM) para a visualização de núcleos de calcificação4,8. Na RM identifica-se tais achados com imagem de baixa intensidade em T2 e variável em T15,6,8. Os locais mais acometidos são núcleo reticular, globo pálido e córtex cerebral. Estudos recentes têm revelado que a RM por difusão mostrou maior sensibilidade que a TC e pode ser uma ferramenta promissora para o diagnóstico desta síndrome1 . Em 2005, Manyam definiu 5 critérios para auxiliar no diagnóstico da Síndrome de Fahr: 1. Calcificação bilateral dos gânglios da base. 2. Disfunção neurológica como desordens do movimento e manifestações neuropsiquiátricas. 3. Ausência de anormalidades biomecânicas sugestivas de doença mitocondrial, desordem metabólica ou sistêmica. 4. Ausência de causas tóxicas, traumáticas e infecciosas. 5. História familiar consistente e/ou comprovação genética3 .
Não existe tratamento que limite a progressão da calcificação dos núcleos da base na Síndrome de Fahr9 . O tratamento é baseado no alívio sintomático e melhora dos sinais clínicos1 . Controle de ansiedade, depressão e reposição de cálcio são algumas das terapêuticas utilizadas. O tratamento do hipoparatireoidismo é realizado com reposição de cálcio e calcitriol até atingir níveis séricos de 8-8,5mg/dl. Em casos especiais, análogos de PTH são recomendados10. Descrevemos um caso de Síndrome de Fahr secundário ao hipoparatireoidismo primário com quadro típico de sintomas de hipocalcemia, que melhoraram após reposição de cálcio e calcitriol. A calcificação das regiões cerebrais permanecerá e o tratamento do hipoparatireodismo proporcionará melhora sintomática e qualidade de vida.
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